terça-feira, 12 de julho de 2011

A FUNÇÃO SOCIAL DO EDUCADOR

A Chave

E de repente

o resumo de tudo é uma chave.

A chave de uma porta que não abre

para o interior desabitado

no solo que inexiste,

mas a chave existe.

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A porta principal, esta é que abre

sem fechadura e gesto.

Abre para o imenso.

Vai-me empurrando e revelando

o que não sei de mim e está nos Outros.

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E aperto, aperto-a, e de apertá-la,

ela se entranha em mim. Corre nas veias.

É dentro em nós que as coisas são,

ferro em brasa – o ferro de uma chave.

Carlos Drummond de Andrade

A educação é uma chave. Chave que abre a possibilidade de se transformar o homem anônimo, sem rosto, naquele que sabe que pode escolher, que é sujeito participante de sua reflexão, da reflexão do mundo e da sua própria história, assumindo a responsabilidade dos seus atos e das mudanças que fizer acontecer. Esta chave nos permite modificar a realidade, alterando o seu rumo, provocando as rupturas necessárias e aglutinando as forças que garantem a sustentação de espaços onde o novo seja buscado, construído e refletido.

Num país com imensas desigualdades e contradições, a educação se apresenta como um fator de esperança e transformação para a sociedade, não apenas permitindo o acesso ao conhecimento, à participação, mas propiciando condições para que o indivíduo construa sua cidadania.

Falar de cidadania é falar de igualdade de oportunidades entre as pessoas, da consciência de que é possível transformar e conviver com as diferenças e que o bem-estar individual para pelo bem-estar coletivo. A construção da cidadania exige transformações profundas na sociedade e mudança de paradigmas a partir de uma visão ético-política. Essas mudanças ocorrem simultaneamente nas pessoas e no contexto em que estão inseridas.

As possibilidades de mudança acontecem através do exercício da cidadania participativa, que vai se construindo de muitas formas, sendo uma delas o desenvolvimento de iniciativas comunitárias que têm gerado e efetivado projetos de transformação, articulando entre si uma teia de experiências que têm diferenciado o movimento social dos últimos anos.

Na décadas de 80 e 90, intensificaram-se as iniciativas sociais em favor das crianças e adolescentes, com o surgimento de entidades governamentais e não-governamentais de atendimento a essa parcela da população, inaugurando um novo tipo de parceira entre o público e o privado, na busca de alternativas para a questão social do país, encarada e assumida não mais como responsabilidade única do Estado. O conceito de “público” passou a ser rediscutidos e redimensionado, levando a uma maior participação dos diversos segmentos sociais nas questões de interesse coletivo.

Nesse contexto histórico-social se insere o educador popular, cuja ação é comparável a uma chave que abre horizontes. Este educador, no seu trabalho com jovens, sabe que há portas que podem ser abertas e outras cuja chave só os adolescentes possuem. Cabe-lhe desenvolver ações que respondam aos anseios dessa população, que se encaminha para a idade adulta com baixos ou inexistentes níveis de escolaridade e sem capacitação específica para o mundo do trabalho, cada vez mais complexo, exigente e competitivo.

Aos educadores que atuam em comunidades populares, é necessária a consciência de que se pode construir novas relações consigo mesmo, com o outro, com o mundo, a partir de um processo educativo que leva em conta a realidade da população, acreditando ser possível tomar um rumo novo, mudar o destino, quebrar preconceitos e livrar-se de estereótipos.

Educadores, provenientes ou não do meio popular, podem se identificar no nível do desejo, das crenças, dos referenciais teóricos, porém, há uma qualidade do ser, diferente entre eles. Talvez sejam as raízes, as memórias infantis, aquilo que se entranha em nós e que chamamos de “cultura do lugar”.

Nas comunidades populares, as contribuições dadas pelo educador proveniente de outro segmento social e pelo educador do meio popular são diferentes, mas igualmente importantes. O primeiro solidariza-se com uma classe e sua causa, comprometendo-se e identificando-se com ela. O segundo dedica-se a uma causa que é sua.

Qualquer que seja a origem deste educador, é preciso que ele se distancie, em alguns momentos, para ser espectador da própria prática e assim percebê-la com um olhar mais crítico e menos emocional. Em contrapartida, em outros momentos, é necessário inserir-se no meio, fazer parte dele, viver sua realidade, solidarizando-se com ela. E solidarizar-se significa colocar à disposição dos jovens todo o saber e bagagem pessoal que possui, buscando em conjunto viabilizar ações, novas experiências, maneiras diferentes de ver, perceber, agir e se relacionar com o mundo.

A função social do educador é ser agente de transformação. Cabe a ele auxiliar na organização dos desejos e necessidades da população com a qual trabalha. Ele se constitui numa referência para a comunidade, participando da estruturação do movimento popular a partir do seu trabalho com os jovens. Sua função não se restringe ao trabalho com os grupos, mas amplia-se para as famílias e a comunidade em geral.

Ao educador, no desempenho do seu trabalho com os grupos, chamamos facilitador. O que, no entanto, pretende facilitar?

Para responder a esta indagação, é preciso compreender que o facilitador ajuda a descobrir caminhos, a pensar alternativas e revelar significados. Não se trata de um condutor, pois na condução o outro é passivo, segue, obedece. Na facilitação, o outro participa. O maior desafio do educador é justamente equilibrar-se entre a tendência a conduzir, pensando saber o que é melhor para o jovem, e o deixar-se conduzir, não colocando limites, compensando necessidades com permissividade.

Para alguns adolescentes, os limites são muito amplos, são a rua, o mundo. E o mundo é grande demais. Estar no mundo pode tornar-se assustador. Criando um vínculo com o educador através da troca e do afeto, os limites podem ser mais facilmente aceitos, e os espaços, internos e externos, ganham contornos, tomam forma.

O caminho mais fácil para o entendimento entre o educador e o adolescente é a história de vida. É preciso saber um pouco da história de vida do adolescente para conhecer suas potencialidades e dificuldades. Esse conhecimento facilita o diálogo entre o adolescente, educador e grupo. Assim, o educador fica mais forte, tem mais inspiração para viver sua aventura pedagógica.

Através da compreensão e do conhecimento da realidade de vida do adolescente, o facilitador pode perceber o sentido e o significado de suas ações e atitudes, passando a funcionar como um espelho no qual o jovem vai se mirar para reconhecer a sua própria imagem. Imagem que reflete a confiança, o respeito e o afeto do educador pelo adolescente, assim como aquilo que acredita ser possível a este alcançar. Tal espelhamento propicia o vínculo e permite que o compromisso entre educador e adolescente se estabeleça. Este compromisso é, antes de tudo, reciprocidade e empatia, fazendo do diálogo um método de trabalho adequado para o desenvolvimento pessoal e social.

Sabemos que nem sempre, ao se mirar, o adolescente aceita o que vê. A imagem refletida, às vezes, é negada, ignorada ou até guardada em algum lugar desconhecido dentro dele, ressurgindo, ou não, tempos depois.

Ao realizar um trabalho de desenvolvimento pessoal e social de jovens, o educador precisa ter cuidado para resistir à ilusão de que pode dar ao adolescente tudo o de que este necessita. A necessidade de “colo”, a “carência”, o mobiliza. É fácil entrar nesse jogo, perder a dimensão e querer abraçar mais do que pode. Para escapar, é preciso buscar clareza da sua identidade, da sua função e do seu papel. É freqüente, ao envolver-se, esquecer de que desempenha uma função específica cujo propósito é educar. Educar para a cidadania. Nessa função, o educador não é igual ao adolescente. Seu papel é diferenciado.

O educador tem um lugar. Às vezes, precisa ser firme, fazendo intervenções determinadas e específicas. Precisa ter e colocar limites, pois a demanda é tão grande, que corre o risco de se perder, sem saber a que atender primeiro. É preciso estabelecer limites sem ser brusco, de uma forma delicada, fazendo uso da palavra, perguntando ao adolescente o que quer expressar, relembrando as regras de convivência e mostrando as conseqüências de sua ação. E isso só é possível se souber qual é o seu papel.

Sem papel definido, o educador acredita atender a todas as demandas, descobrindo, ao longo do processo, que é impossível dar contra dessa exigência. Faz-se necessário interpretar as demandas e priorizá-las, porque, muitas vezes, o que é pedido não corresponde ao que se pode dar e a tudo o que os adolescentes necessitam. Nem sempre o que é solicitado expressa um desejo que deve ser atendido.

É comum o educador, quando inicia a sua atuação, pensar que pode suprir todas as faltas. Ao perceber a realidade, assusta-se, passando a considerar a sua ação ineficaz: ela de nada adianta por ser tão pequena diante das necessidades trazidas pelos adolescentes. O educador sofre. Desse sofrimento surge uma constatação: sonhar o impossível, mas realizar o possível.

A seqüência de realizações possíveis leva ao que parecia impossível. Pequenos projetos funcionam como uma escada para alcançar os sonhos. Ao fazer esta descoberta, o educador torna-se capaz de aceitar o alcance e os limites de sua ação: realizar algo, dar de si, receber, trocar, ensinar e aprender. Nesta dialética, as mudanças se processam, acontecem as transformações. Quando o educador aceita os seus limites, possibilita também ao adolescente aceitar os seus. Na verdade, trabalhar o desenvolvimento pessoal e social de jovens facilita o crescimento do próprio educador. Vivenciar esse processo permite-lhe a reavaliação de suas posturas, valores, sonhos e projetos e a reconstrução de comportamentos e atitudes.

Finalmente, na convivência com grupos de adolescentes, adquirimos uma certeza: a de que o trabalho com jovens se pauta mais na construção de um vínculo de caráter libertador, fundamentado na confiança e no respeito, do que em discussões formais sobre temas objetivos. Libertador é o vínculo, é a relação que permite a expressão das questões pessoais sob as mais variadas formas, que possibilita a descoberta de que é possível somar diferenças, que garante a existência do individual dentro do coletivo, que viabiliza a percepção das contradições pessoais e grupais e a construção de novos caminhos.

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Construir um Novo Ser e um Novo Mundo a partir de uma nova relação é a chave da função social do educador. O vínculo que se estabelece entre o educador e o adolescente abre possibilidades para novas formas de sentir, querer e agir.

Portas que se abrem, portas que permanecem fechadas. Mas a chave existe. “É dentro de nós que as coisas são” — desejo e força. Educador/adolescente em sua paixão. Adolescente/educador de si mesmo através do outro. Viagem pelo espelho, imagens refletidas de sonho e realidade em que é possível descobrir-se, revelar-se, construir-se. Ser sendo e convivendo.

Fonte: “Aprendendo a ser e a conviver”. Margarida Serrão e Maria Clarice Baleeiro, Editora FTD.

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