“ O arcaico demolido, a tradição preservada e o futuro desalado".
Mário Cortella
A melhor maneira que agente tem de fazer possível amanhã alguma coisa que não é possível de ser feita hoje, é fazer hoje aquilo que hoje pode ser feito e tentar hoje o que não pode ser feito. Mas se eu não fizer hoje o que pode ser feito e tentar hoje o que não pode ser feito, dificilmente eu faço amanhã o que hoje também não pude fazer.
Paulo Freire.
“Desatai o futuro!“ bradou, furioso, o russo e o poeta universal Maiakovski. Poderíamos acrescentar, presunçosamente, um ‘preservai o passado’! Como forma de dar sustentação sólida a esse futuro em invenção constante.
Mas, o que preservar do passado? Nem tudo, é claro; afinal o passado não é nem o lugar do imutável (pois depende de como o continuamos), nem um mero depositário temporal do, agora, inútil. É preciso, antes de mais nada, quando pensamos em passado, fazer uma distinção entre o tradicional e o arcaico. O tradicional é o que deve ser protegido, guardado, levado adiante; é, a tradição, uma espécie de promontório, a partir do qual o futuro que pode ser vislumbrado naquilo que carrega de mais próximo à qualidade positiva. Já o arcaico, por sua vez, é o que deve ser descartado, por ter-se provado insuficiente, precário, anacrônico.
Para pensarmos um pouco sobre essa relação entre passado, presente e futuro, vale a pena reencontrar uma historinha(infelizmente) real.
Em meados dos anos 70 de nosso século, dois caciques da nação Xavante vieram, de avião, visitar a cidade de São Paulo; a visão aérea noturna de uma megalópole(com sua “floresta” de prédios) os impressionou sobremaneira ( tal como, para nós, é inesquecível e confusa paisagem amazônica). Foram dormir em um hotel e, no dia seguinte, levados para passear. Aonde leva-los, senão para ver o diferente, o exótico e o inédito? Andaram no metrô(recém-inaugurado), caminharam pela Av. Paulista( com suas catedrais financeiras altíssimas), visitaram um Shopping Center (só havia dois naquele tempo) e, por fim, foram conhecer um dos prédios históricos paulistanos na região central que abriga um imenso mercado municipal(entreposto de frutas, legumes e cereais).
A ida ao mercado tinha finalidade de surpreendê-los com um cenário paradisíaco: alimentos acumulados em grande quantidade. Como, naquela época, eles quase não usavam o dinheiro como mediação para qualidade de vida, o alimento farto representava uma riqueza incomensurável. Entraram, deram dois passos no interior do prédio e, subitamente, estancaram boquiabertas com o cenário: pilhas e pilhas de alface, de cenoura, de tomate, de laranja, etc. Começaram a andar por entre as pilhas e caixas, em meio aquele ruído de vozes, folhas e frutos esmagados e caídos no piso, num movimento incessantes. De repente, um deles viu algo que nenhum e nenhum de nós veria, pois não chamaria a nossa atenção. Ele aponta e disse: ‘O que ele está fazendo?’ ‘Ele’ era um menino de 10 anos de idade, negro, pobre(nós o saberíamos pelas vestimentas) que no chão catava verduras e frutas amassadas, estragadas e sujas, e as colocava em um saquinho plástico. A reposta foi ‘óbvia’: Ele está pegando comida.
O cacique continuou passeando, calado( provavelmente tentando compreender a resposta dada); depois de uns 10 minutos, voltou à carga: (Não entendi. Por que o menino está pegando aquela comida podre se tem tanta coisa boa nas pilhas e caixas? Outra resposta evidente: por que para pegar na pilhas precisa ter dinheiro. Insiste o Xavante( já irritante, pois está escavando onde a injustiça sangra). E por que não tem dinheiro? Réplica enfadonha do civilizado: Por que ele é criança! Torna o índio: E o pai dele? Tem dinheiro? Outra obviedade: Não, não tem. Questão final: Então, não entendi de novo. Por que você que é grande, tem dinheiro e o pai do menino, que também é não tem? A única saída possível foi responder: Por que aqui é assim!
Os índios pediram para ir embora, não apenas do mercado, mas da cidade. Não tiveram uma revolta ética, mas cultural; não captaram num dos modos de organização de nossa cultura. Não conseguiram compreender essa situação tão “normal”: se uma criança tem fome e não tem dinheiro; come comida estragada. Para que pudessem aceitar mais tranqüilamente o “por que aqui é assim” teriam que ter sido formados e formadores da nossa sociedade, freqüentado nossas instituições sociais, teriam que ter sido “civilizados".
A intenção do relato acima não é moralista e nem deseja propor um “modelo indígena de existência” é ressaltar aquela que é nossa maior tarefa: o esforço de destruição do por que aqui é assim.
A ruptura do “por que aqui é assim” principia pela recusa à ditadura dos fatos consumados e à ditadura fatalista de um presente que aparenta ser invencível, tamanhos são obstáculos cotidianos com os quais nos deparamos.
É preciso ter audácia de reinventar em conjunto, o humano, e, com ele uma ética da rebeldia, uma ética que reafirme nossa possibilidade de dizer não e que valorize a inconformidade.
Não é mero acaso que uma das primeiras palavras, de fato, que um ser humano aprende a dizer e a entender é o não. Seja oral ou gestualmente, o não é a fundação a partir da qual se constrói nossa principal característica: a liberdade, a capacidade de ultrapassar as determinações da natureza e das situações presumidamente limitantes. Só quem é capaz de dizer o não pode dizer o sim, isto é, pode escolher e acatar deliberadamente o curso das circunstancias e das exigências externas e internas.
Ser humano é ser justo. É necessário negar a afirmação liberticida de que “a minha liberdade acaba quando começa a do outro".A minha liberdade acaba quando acaba o do outro; se algum humano ou humana não é livre, ninguém é livre. Se alguém não for livre da discriminação, ninguém é livre da discriminação. Se alguma criança não for livre da falta de escola, de família, de lazer, ninguém é livre.
É preciso resgatar a paixão por uma idéia irrecusável; gente foi feita pra ser feliz!
E esse é nosso trabalho; não só mais também nosso. Paixão pela inconformidade de as coisas serem com são; paixão pela derrota da desesperança, paixão pela idéia de procurando tornar as pessoas melhores, melhorar a si mesmo ou mesma; paixão, em suma, pelo futuro.
Nosso “negócio” é o futuro... Cada um e cada uma de nós tem contato diariamente com o futuro; cada dia encontramos com o que há de mais novo na humanidade, porque também o somos.
Desse ponto de vista, é absurda a idéia que entende que alguém, quanto mais vive, mais velho fica. Para que alguém, quanto mais vivesse mais velho se tornasse, teríamos que ter nascidos prontos e irmos nos gostando. Ora isso acontece com carros, fogões ou sapatos; com humanos e humanas não. Nascemos não-prontos e vamos nos fazendo: eu neste momento, sou o mais novo de mim, minha mais nova edição( “revista e ampliada”) e, se o critério para a velhice é o tempo, o mais velho de mim está no passado.
A nova realidade social a ser parida também por nós do que uma espera(nostalgia do futuro); é um escavar no hoje de nossas práticas à procura daquilo que hoje pode ser feito. Esse hoje é uma das pontas do nó do futuro a ser desatado, fruto de situações que não se alteram por si mesmas e nem se resolvem com um Ah! Se eu pudesse!... Ah no meu tempo...
Nosso tempo é este hoje em que já se encontra em gestação o amanhã. Não um qualquer, mas um amanhã intencional, planejado, provocado agora. Um amanhã sobre o qual não possuímos certezas, mas que sabemos existem.
Pode parecer romântico(até piegas): no entanto é dessa utopia que não nos podemos apartar, sob a pena de perdermos o sentido de humanidade.
Há um ditado chinês que diz que, se dois homens vêm andando por uma estrada, cada um carregando um pão, e, ao se encontrarem eles trocam os pães, cada homem vai embora com um; porém, se dois homens vêm andando por uma estrada cada um carregando uma idéia, e, ao se encontrarem, eles trocam as idéias, cada homem vai embora com duas.
Quem sabe é esse mesmo o sentido do nosso fazer: repartir idéias, para todos terem pão...
Mário Cortella.
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